sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012


                    A Doma de Cavalos no Rio Grande do Sul
Arial Lara de Oliveira
Reportagem realizada em maio de 2009

Basta ver qualquer desfile da Semana Farroupilha para perceber: o cavalo faz parte da identidade cultural do gaúcho. Algo de que qualquer gaúcho sabe, muito embora nem todos convivam com o animal nos dias de hoje. O cavalo está ligado à figura do gaúcho de uma maneira indissociável.
Os primeiros cavalos chegaram ao Rio Grande do Sul no século XVI, trazidos para as Missões por padres jesuítas espanhóis. Foram logo adotados pelos índios missioneiros para transporte, caça e agricultura. Com a criação da identidade gaúcha, o animal, que se adaptou facilmente à geografia daqui, foi adotado. O cavalo era a melhor maneira de transporte para os pampas, ótimo para se lidar com gado e útil para as frequentes batalhas e disputas territoriais no estado. Hoje em dia, o cavalo perdeu a sua função bélica, mas ainda é utilizado para lida e transporte, além de ter adquirido funções de equitação mais recreativa, como a corrida e o salto.
Mas como pode um único animal ser tão versátil?

RAÇAS
O mais antigo membro da família dos cavalos data de mais de 50 milhões de anos, no período Eoceno. Com o processo de evolução, chegou-se ao cavalo que conhecemos hoje. Mas mesmo esse cavalo nosso conhecido não é tão simples como o que pensamos.
Cada raça tem suas características próprias, tanto física quanto mentalmente, tem facilidade para algumas coisas, dificuldade para outras, comportamento e temperamento específicos. Não é a toa que algumas raças são mais procuradas para a lida no campo, por sua resistência ou docilidade, outras para corridas, por seu vigor e velocidade. Há raças mais estouradas, menos pacienciosas, mais sensíveis e dominadoras, que são conhecidas como raças de temperamento sanguíneo. São raças como o cavalo lusitano ou o árabe. As raças de mais força, mais calma e menos decisão são conhecidas como de temperamento linfático. São raças como o cavalo Brasileiro de Hipismo (BH) e o quarto-de-milha.
Criador e domador de cavalos crioulos, Leonardo Oliveira da Silva ressalta que mesmo dentro das raças há diferentes linhagens com características específicas. Ele dá o exemplo da raça crioula, em que cavalos de origem chilena são mais dóceis e inteligentes; os uruguaios, mais resistentes e violentos; os argentinos, fortes e inteligentes; e os brasileiros, resistentes e dóceis.
Assim, as diferentes raças seriam parte da explicação para essa versatilidade do cavalo. Cada raça teria uma facilidade maior para determinada atividade. Mas essa predisposição genética deve ser aliada a um treinamento específico. Essa é a função da doma.

DOMA e HISTÓRIA
Inicialmente, foram os charruas que começaram a doma no Rio Grande do Sul. Foram eles o povo indígena que mais se destacou no uso do cavalo, aprendendo a montar com os espanhóis e virando exímios cavaleiros. Como eram um povo que sempre teve disputas territoriais no estado (assim como no Uruguai e Argentina), também utilizavam o cavalo para a guerra. (Gostavam tanto de cavalos que também costumavam inclusive se alimentar deles, um hábito que foi abandonado pelos gaúchos).
O trato com os cavalos era feito pelas mulheres das tribos. Os homens apenas montavam-nos, para a caça e para a guerra, mas eram inclusive as mulheres que amansavam e ensinavam os animais. A doma dos charruas era baseada na espanhola, pois o cavalo não era conhecido deles inicialmente. Mas a agressividade da doma europeia foi amenizada: primeiro, porque as mulheres eram mais fracas que os homens; segundo, pois os índios tinham respeito pelos animais, e no caso do cavalo, medo, pois era muito maior do que os animais que eles estavam acostumados a ver.
Ao longo do tempo, cavalos que escaparam dos primeiros grupos trazidos pelos espanhóis no séc. XVI começaram a se reproduzir livremente na natureza das planícies argentinas, uruguaias e gaúchas. Essa nova raça selvagem acabou se formando como uma mistura das raças europeias e árabes, especialmente evoluída com a resistência ao clima típico da geografia local. Assim nasceu a raça crioula, animal símbolo do Rio Grande do Sul reconhecido por lei. Esse era o cavalo utilizado pelos habitantes dos pampas gaúchos, que, por ser uma raça nova e selvagem, precisava ser re-domesticada. Devido ao frequente contato com uruguaios e argentinos, a doma utilizada aqui voltou a ter a agressividade espanhola. Com o tempo, começaram a chegar outras culturas para colonizar o estado, e com elas, outras raças. Também a doma diversificou-se com isso.
Foi quando estourou a Revolução Farroupilha. Os cavalos precisavam ser treinados e estar prontos para a guerra no menor tempo possível. Para isso, utilizava-se de métodos mais agressivos, que submetiam o cavalo à vontade do treinador rapidamente. É a técnica hoje conhecida por doma tradicional. Amarrando as patas do animal (o maneio), derrubando-o no chão ou quebrando-lhe o queixo (doma de bocal), essa técnica faz com que o cavalo, por medo e para evitar a dor, siga as ordens e aceite a presença do cavaleiro em seu lombo forçadamente. É um método que machuca o cavalo, mas para a época da Revolução Farroupilha era útil, pois deixava o cavalo pronto para ser montado em vinte dias. Um ensinamento através de dor e medo não resulta em uma boa relação do animal com o domador, o que não pode ser positivo quando se depende desse animal. Muito embora se deixe ser montado, o cavalo não se sentirá calmo ou seguro com o cavaleiro, atingindo resultados bem inferiores que todo o seu potencial.

DOMA RACIONAL
Hoje em dia, ainda é utilizada a doma tradicional, mas foram desenvolvidas outras técnicas de doma. Uma delas é a doma racional.
Essa técnica consiste em domar o cavalo com comandos lógicos e claros. Leonardo Oliveira da Silva explica que cada vez que o cavalo executa determinado comando deve-se recompensá-lo; caso contrário, deve ser corrigido, e não punido. Nelson Lopes da Silva, criador e domador de cavalos, utiliza a pressão e o alívio da pressão no buçal para mostrar para o cavalo o que ele deve ou não fazer. Por exemplo, para que o cavalo se mova para a esquerda, aplica-se pressão nessa direção, e assim que o cavalo acompanha com seu movimento, a pressão deve ser aliviada. O cavalo não aprende com a pressão e sim com o alívio dela. Em aproximadamente três repetições, ele deve entender que uma pressão para um lado significa movimentar-se para o mesmo lado. Dependendo do animal, pode-se levar mais vezes, mas isso deve ser sentido pelo domador e trabalhado com ele. Sempre que o cavalo tenta tomar uma iniciativa sozinho, deve ser parado e obrigado a fazer o contrário, para perceber que quem dá as ordens é o homem.
Nelson Lopes está escrevendo um livro sobre a doma racional que utiliza em sua cabanha, em Vila Nova do Sul. Nele, explica passo a passo como doma cavalos para o seu uso, a lida campeira. A doma racional se estrutura através de fases. Quando o domador sente que o cavalo está pronto, aprendeu o movimento ou se acostumou com um aspecto novo, passa-o para a fase seguinte do treinamento.
É uma doma na qual não se deve ter pressa. Precisa-se de muito conhecimento, experiência e sensibilidade para saber quando recompensar os movimentos corretos e corrigir o que sai errado. Para domar um cavalo com essa técnica, leva-se em média de três a quatro meses, dependendo do cavalo, da intensidade do treino e da experiência do domador, entre outras coisas. Leonardo Oliveira afirma ainda que há uma linguagem corporal entre o cavalo e o domador. Para domar um animal, só é necessário experiência para saber interpretá-la. Uma vez estabelecido esse entendimento, o cavalo utiliza sua surpreendente memória e nunca mais esquece um comando.

IMPRINTING
Uma das fases nas quais o cavalo mais tem facilidade para aprender, quando a memória retém mais nitidamente acontecimentos, é a sua infância. Como são animais de fuga, são caçados, o filhote precisa estar pronto para fugir, caso necessário, a qualquer momento, sem se perder do bando nem se deixar ser capturado. É disso que se aproveita o imprinting. A veterinária Denise Bicca Fernandes, que trabalha com cavalos há mais de trinta anos, nos explica que a técnica consiste em trabalhar com o potro logo após seu nascimento e durante os dias seguintes.
Nessa época, vai se introduzindo na vida do filhote aquilo que será parte de sua vida adulta. Os primeiros contatos com os humanos devem ser o mais agradável e positivo possível, pois formarão a ideia que o cavalo terá de homens para o resto da vida. “Com o imprinting é possível tirar o medo natural que os cavalos têm de nós, por sermos predadores e eles, a presa”, afirma Denise. A técnica visa também estabelecer uma dominância humana desde cedo no potro, para que ele se acostume a seguir comandos do domador, virando um cavalo mais confiante e fácil de domar.
Trabalhando com o potro, se faz com que ele se acostume com a presença do treinador. Inicialmente o potro é manuseado em todo seu corpo. Orelhas, boca, rabo e lombo são tocados mostrando ao animal que isso não irá machucá-lo, nunca parando enquanto houver resistência ou medo. O domador deve se posicionar à esquerda, à frente, às costas do animal, até que ele não se mostre nem um pouco preocupado com sua presença, se dessensibilize. Todo o processo é um jogo de aproximação e afastamento que deve ser interpretado pelo domador. Se o cavalo foge, o treinador deve se afastar; sua presença nunca deve ser forçada, e sim aceita. Nos dias seguintes, trabalha-se reforçando o laço treinador/potro continuamente introduzindo novos desafios de forma gentil e consistente, e sempre em curtos períodos. Assim, explica Denise, treina-se o cavalo a não ter medo ou resistência a procedimentos veterinários e treinamento.
Mas Nelson Lopes da Silva avisa que tem de se ter muita experiência para fazer oimprinting. Ele lembra que cavalos têm uma ótima memória, e que qualquer experiência negativa nessa fase pode traumatizar o animal. “Todos nós [criadores de cavalos] temos uma comprovação disso”, afirma Nelson. “Cavalos que se cortaram em um arame, por exemplo, e ficam ressabiados quando veem outros arames no chão ou mesmo nas cercas.”

NATURAL HORSEMANSHIP
A técnica utilizada pela veterinária Denise Bicca Fernandes tem semelhanças com a doma racional. Segundo a própria Denise, “é uma doma, e é racional, no sentido que trabalha a mentalidade do cavalo”. A diferença básica é que trabalha com o cavalo a partir de conhecimentos sobre seu comportamento, instintos e personalidade. Por isso o nome, natural horsemanship, ou equitação natural.
Para ela, algumas características foram essenciais na sobrevivência do cavalo ao longo de sua evolução. Vigilância constante e percepção aguçada, confiança na união do grupo, voluntariedade em seguir um líder experiente. Rapidez na reação para o perigo, mas também rápida dessensibilização ao que não é perigoso. Aprendizado precoce, facilidade para aprender, comunicação por linguagem corporal e memória infalível. A principal defesa de um cavalo contra seus predadores é a fuga. O cavalo só irá se tornar violento se não houver possibilidade de fuga. É nessas características, no entendimento e aceitação delas por parte do domador, que se baseia a técnica da equitação natural.
Utilizando, quando possível, o imprinting, aspectos também utilizados na doma racional e o respeito à natureza do animal, a natural horsemanship não tenta ensinar nada ao cavalo. O objetivo é mostrar a ele que o domador compreende suas necessidades, tem experiência para se tornar o líder do grupo. A partir do momento que isso acontece, Denise explica que o animal estará sempre atento aos gestos do domador e confiará nele, acatará esses gestos como ordens das quais depende sua sobrevivência. É uma relação de extrema confiança, que resulta no cumprimento imediato dos comandos, por sutis que sejam, percebidos pelo animal.
A veterinária não fala em tempo de doma. Primeiro, pois considera que cada cavalo é diferente. Segundo, pois para ela o cavalo está sempre em doma. Ou melhor, em todas as ocasiões, uma vez estabelecido o laço de liderança e confiança com o domador, o cavalo estará observando-o para receber eventuais sinais de comando. Por ser um animal de percepção muito aguçada e de grande curiosidade, ele está sempre apto a perceber novas situações e receber coordenadas sobre o que fazer diante delas. Por mais que esteja em uma atividade há bastante tempo, o cavalo sempre pode passar por situações novas para ele, e essa relação com o treinador estará sempre aberta para essas circunstâncias.
Denise Fernandes afirma que não se pode julgar a técnica, pois é algo natural, inerente ao cavalo, adquirido através de milhões de anos de evolução e sobrevivência. O que é necessário é que o homem entenda o cavalo clara e positivamente, e alcance com ele um nível de comunicação em que usem a mesma linguagem.
Essas técnicas de doma não são usadas exclusivamente no Rio Grande do Sul, nem foram criadas aqui exclusivamente. Técnicas de doma mais agressivas são inclusive mais comuns no resto do país, assim como outras técnicas racionais. O mesmo acontece em outros países, dependendo de sua cultura e de seu uso para os cavalos, é usada uma ou outra técnica. Cada doma é na verdade um conjunto de técnicas que cada pessoa desenvolve de acordo com sua experiência. Por mais que se as agregue em grupos com nomes específicos, cada domador dará uma visão diferente para a execução dessa doma.
Mas um relato sobre as domas utilizadas no Rio Grande do Sul é diferente pela forte relação do gaúcho como um povo com esse animal tão complexo e tão diferente dos seres humanos. São exatamente essas diferenças que nos ajudam a crescer e aprender com o cavalo, que de certa forma fizeram nossa identidade como gaúcho, e certamente é um dos aspectos que aproxima nossa cultura mais dos pampas platinos do que do resto do Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário