A Doma de Cavalos no Rio Grande do Sul
Basta ver qualquer
desfile da Semana Farroupilha para perceber: o cavalo faz parte da identidade
cultural do gaúcho. Algo de que qualquer gaúcho sabe, muito embora nem todos
convivam com o animal nos dias de hoje. O cavalo está ligado à figura do gaúcho
de uma maneira indissociável.
Os primeiros cavalos
chegaram ao Rio Grande do Sul no século XVI, trazidos para as Missões por
padres jesuítas espanhóis. Foram logo adotados pelos índios missioneiros para
transporte, caça e agricultura. Com a criação da identidade gaúcha, o animal,
que se adaptou facilmente à geografia daqui, foi adotado. O cavalo era a melhor
maneira de transporte para os pampas, ótimo para se lidar com gado e útil para
as frequentes batalhas e disputas territoriais no estado. Hoje em dia, o cavalo
perdeu a sua função bélica, mas ainda é utilizado para lida e transporte, além
de ter adquirido funções de equitação mais recreativa, como a corrida e o
salto.
Mas como pode um único
animal ser tão versátil?
RAÇAS
O mais antigo membro
da família dos cavalos data de mais de 50 milhões de anos, no período Eoceno.
Com o processo de evolução, chegou-se ao cavalo que conhecemos hoje. Mas mesmo
esse cavalo nosso conhecido não é tão simples como o que pensamos.
Cada raça tem suas
características próprias, tanto física quanto mentalmente, tem facilidade para
algumas coisas, dificuldade para outras, comportamento e temperamento
específicos. Não é a toa que algumas raças são mais procuradas para a lida no
campo, por sua resistência ou docilidade, outras para corridas, por seu vigor e
velocidade. Há raças mais estouradas, menos pacienciosas, mais sensíveis e
dominadoras, que são conhecidas como raças de temperamento sanguíneo. São raças
como o cavalo lusitano ou o árabe. As raças de mais força, mais calma e menos
decisão são conhecidas como de temperamento linfático. São raças como o cavalo
Brasileiro de Hipismo (BH) e o quarto-de-milha.
Criador e domador de
cavalos crioulos, Leonardo Oliveira da Silva ressalta que mesmo dentro das
raças há diferentes linhagens com características específicas. Ele dá o exemplo
da raça crioula, em que cavalos de origem chilena são mais dóceis e
inteligentes; os uruguaios, mais resistentes e violentos; os argentinos, fortes
e inteligentes; e os brasileiros, resistentes e dóceis.
Assim, as diferentes
raças seriam parte da explicação para essa versatilidade do cavalo. Cada raça
teria uma facilidade maior para determinada atividade. Mas essa predisposição
genética deve ser aliada a um treinamento específico. Essa é a função da doma.
DOMA e HISTÓRIA
Inicialmente, foram os
charruas que começaram a doma no Rio Grande do Sul. Foram eles o povo indígena
que mais se destacou no uso do cavalo, aprendendo a montar com os espanhóis e
virando exímios cavaleiros. Como eram um povo que sempre teve disputas
territoriais no estado (assim como no Uruguai e Argentina), também utilizavam o
cavalo para a guerra. (Gostavam tanto de cavalos que também costumavam
inclusive se alimentar deles, um hábito que foi abandonado pelos gaúchos).
O trato com os cavalos
era feito pelas mulheres das tribos. Os homens apenas montavam-nos, para a caça
e para a guerra, mas eram inclusive as mulheres que amansavam e ensinavam os
animais. A doma dos charruas era baseada na espanhola, pois o cavalo não era
conhecido deles inicialmente. Mas a agressividade da doma europeia foi
amenizada: primeiro, porque as mulheres eram mais fracas que os homens;
segundo, pois os índios tinham respeito pelos animais, e no caso do cavalo,
medo, pois era muito maior do que os animais que eles estavam acostumados a
ver.
Ao longo do tempo,
cavalos que escaparam dos primeiros grupos trazidos pelos espanhóis no séc. XVI
começaram a se reproduzir livremente na natureza das planícies argentinas,
uruguaias e gaúchas. Essa nova raça selvagem acabou se formando como uma
mistura das raças europeias e árabes, especialmente evoluída com a resistência
ao clima típico da geografia local. Assim nasceu a raça crioula, animal símbolo
do Rio Grande do Sul reconhecido por lei. Esse era o cavalo utilizado pelos habitantes
dos pampas gaúchos, que, por ser uma raça nova e selvagem, precisava ser
re-domesticada. Devido ao frequente contato com uruguaios e argentinos, a doma
utilizada aqui voltou a ter a agressividade espanhola. Com o tempo, começaram a
chegar outras culturas para colonizar o estado, e com elas, outras raças.
Também a doma diversificou-se com isso.
Foi quando estourou a
Revolução Farroupilha. Os cavalos precisavam ser treinados e estar prontos para
a guerra no menor tempo possível. Para isso, utilizava-se de métodos mais
agressivos, que submetiam o cavalo à vontade do treinador rapidamente. É a
técnica hoje conhecida por doma tradicional. Amarrando as patas do animal (o
maneio), derrubando-o no chão ou quebrando-lhe o queixo (doma de bocal), essa
técnica faz com que o cavalo, por medo e para evitar a dor, siga as ordens e
aceite a presença do cavaleiro em seu lombo forçadamente. É um método que
machuca o cavalo, mas para a época da Revolução Farroupilha era útil, pois
deixava o cavalo pronto para ser montado em vinte dias. Um ensinamento através
de dor e medo não resulta em uma boa relação do animal com o domador, o que não
pode ser positivo quando se depende desse animal. Muito embora se deixe ser
montado, o cavalo não se sentirá calmo ou seguro com o cavaleiro, atingindo
resultados bem inferiores que todo o seu potencial.
DOMA RACIONAL
Hoje em dia, ainda é
utilizada a doma tradicional, mas foram desenvolvidas outras técnicas de doma.
Uma delas é a doma racional.
Essa técnica consiste
em domar o cavalo com comandos lógicos e claros. Leonardo Oliveira da Silva
explica que cada vez que o cavalo executa determinado comando deve-se
recompensá-lo; caso contrário, deve ser corrigido, e não punido. Nelson Lopes
da Silva, criador e domador de cavalos, utiliza a pressão e o alívio da pressão
no buçal para mostrar para o cavalo o que ele deve ou não fazer. Por exemplo,
para que o cavalo se mova para a esquerda, aplica-se pressão nessa direção, e
assim que o cavalo acompanha com seu movimento, a pressão deve ser aliviada. O
cavalo não aprende com a pressão e sim com o alívio dela. Em aproximadamente
três repetições, ele deve entender que uma pressão para um lado significa
movimentar-se para o mesmo lado. Dependendo do animal, pode-se levar mais
vezes, mas isso deve ser sentido pelo domador e trabalhado com ele. Sempre que
o cavalo tenta tomar uma iniciativa sozinho, deve ser parado e obrigado a fazer
o contrário, para perceber que quem dá as ordens é o homem.
Nelson Lopes está
escrevendo um livro sobre a doma racional que utiliza em sua cabanha, em Vila
Nova do Sul. Nele, explica passo a passo como doma cavalos para o seu uso, a
lida campeira. A doma racional se estrutura através de fases. Quando o domador
sente que o cavalo está pronto, aprendeu o movimento ou se acostumou com um
aspecto novo, passa-o para a fase seguinte do treinamento.
É uma doma na qual não
se deve ter pressa. Precisa-se de muito conhecimento, experiência e
sensibilidade para saber quando recompensar os movimentos corretos e corrigir o
que sai errado. Para domar um cavalo com essa técnica, leva-se em média de três
a quatro meses, dependendo do cavalo, da intensidade do treino e da experiência
do domador, entre outras coisas. Leonardo Oliveira afirma ainda que há uma
linguagem corporal entre o cavalo e o domador. Para domar um animal, só é
necessário experiência para saber interpretá-la. Uma vez estabelecido esse
entendimento, o cavalo utiliza sua surpreendente memória e nunca mais esquece
um comando.
IMPRINTING
Uma das fases nas
quais o cavalo mais tem facilidade para aprender, quando a memória retém mais
nitidamente acontecimentos, é a sua infância. Como são animais de fuga, são
caçados, o filhote precisa estar pronto para fugir, caso necessário, a qualquer
momento, sem se perder do bando nem se deixar ser capturado. É disso que se
aproveita o imprinting. A
veterinária Denise Bicca Fernandes, que trabalha com cavalos há mais de trinta
anos, nos explica que a técnica consiste em trabalhar com o potro logo após seu
nascimento e durante os dias seguintes.
Nessa época, vai se
introduzindo na vida do filhote aquilo que será parte de sua vida adulta. Os
primeiros contatos com os humanos devem ser o mais agradável e positivo
possível, pois formarão a ideia que o cavalo terá de homens para o resto da
vida. “Com o imprinting é
possível tirar o medo natural que os cavalos têm de nós, por sermos predadores
e eles, a presa”, afirma Denise. A técnica visa também estabelecer uma
dominância humana desde cedo no potro, para que ele se acostume a seguir
comandos do domador, virando um cavalo mais confiante e fácil de domar.
Trabalhando com o
potro, se faz com que ele se acostume com a presença do treinador. Inicialmente
o potro é manuseado em todo seu corpo. Orelhas, boca, rabo e lombo são tocados
mostrando ao animal que isso não irá machucá-lo, nunca parando enquanto houver
resistência ou medo. O domador deve se posicionar à esquerda, à frente, às
costas do animal, até que ele não se mostre nem um pouco preocupado com sua
presença, se dessensibilize. Todo o processo é um jogo de aproximação e
afastamento que deve ser interpretado pelo domador. Se o cavalo foge, o
treinador deve se afastar; sua presença nunca deve ser forçada, e sim aceita.
Nos dias seguintes, trabalha-se reforçando o laço treinador/potro continuamente
introduzindo novos desafios de forma gentil e consistente, e sempre em curtos
períodos. Assim, explica Denise, treina-se o cavalo a não ter medo ou
resistência a procedimentos veterinários e treinamento.
Mas Nelson Lopes da
Silva avisa que tem de se ter muita experiência para fazer oimprinting. Ele lembra que cavalos
têm uma ótima memória, e que qualquer experiência negativa nessa fase pode
traumatizar o animal. “Todos nós [criadores de cavalos] temos uma comprovação
disso”, afirma Nelson. “Cavalos que se cortaram em um arame, por exemplo, e
ficam ressabiados quando veem outros arames no chão ou mesmo nas cercas.”
NATURAL
HORSEMANSHIP
A técnica utilizada
pela veterinária Denise Bicca Fernandes tem semelhanças com a doma racional.
Segundo a própria Denise, “é uma doma, e é racional, no sentido que trabalha a
mentalidade do cavalo”. A diferença básica é que trabalha com o cavalo a partir
de conhecimentos sobre seu comportamento, instintos e personalidade. Por isso o
nome, natural horsemanship,
ou equitação natural.
Para ela, algumas
características foram essenciais na sobrevivência do cavalo ao longo de sua
evolução. Vigilância constante e percepção aguçada, confiança na união do
grupo, voluntariedade em seguir um líder experiente. Rapidez na reação para o
perigo, mas também rápida dessensibilização ao que não é perigoso. Aprendizado
precoce, facilidade para aprender, comunicação por linguagem corporal e memória
infalível. A principal defesa de um cavalo contra seus predadores é a fuga. O
cavalo só irá se tornar violento se não houver possibilidade de fuga. É nessas
características, no entendimento e aceitação delas por parte do domador, que se
baseia a técnica da equitação natural.
Utilizando, quando
possível, o imprinting,
aspectos também utilizados na doma racional e o respeito à natureza do animal,
a natural horsemanship não
tenta ensinar nada ao cavalo. O objetivo é mostrar a ele que o domador
compreende suas necessidades, tem experiência para se tornar o líder do grupo.
A partir do momento que isso acontece, Denise explica que o animal estará
sempre atento aos gestos do domador e confiará nele, acatará esses gestos como
ordens das quais depende sua sobrevivência. É uma relação de extrema confiança,
que resulta no cumprimento imediato dos comandos, por sutis que sejam,
percebidos pelo animal.
A veterinária não fala
em tempo de doma. Primeiro, pois considera que cada cavalo é diferente.
Segundo, pois para ela o cavalo está sempre em doma. Ou melhor, em todas as
ocasiões, uma vez estabelecido o laço de liderança e confiança com o domador, o
cavalo estará observando-o para receber eventuais sinais de comando. Por ser um
animal de percepção muito aguçada e de grande curiosidade, ele está sempre apto
a perceber novas situações e receber coordenadas sobre o que fazer diante
delas. Por mais que esteja em uma atividade há bastante tempo, o cavalo sempre
pode passar por situações novas para ele, e essa relação com o treinador estará
sempre aberta para essas circunstâncias.
Denise Fernandes
afirma que não se pode julgar a técnica, pois é algo natural, inerente ao
cavalo, adquirido através de milhões de anos de evolução e sobrevivência. O que
é necessário é que o homem entenda o cavalo clara e positivamente, e alcance
com ele um nível de comunicação em que usem a mesma linguagem.
Essas técnicas de doma
não são usadas exclusivamente no Rio Grande do Sul, nem foram criadas aqui
exclusivamente. Técnicas de doma mais agressivas são inclusive mais comuns no
resto do país, assim como outras técnicas racionais. O mesmo acontece em outros
países, dependendo de sua cultura e de seu uso para os cavalos, é usada uma ou
outra técnica. Cada doma é na verdade um conjunto de técnicas que cada pessoa
desenvolve de acordo com sua experiência. Por mais que se as agregue em grupos
com nomes específicos, cada domador dará uma visão diferente para a execução
dessa doma.
Mas um relato sobre as
domas utilizadas no Rio Grande do Sul é diferente pela forte relação do gaúcho
como um povo com esse animal tão complexo e tão diferente dos seres humanos.
São exatamente essas diferenças que nos ajudam a crescer e aprender com o
cavalo, que de certa forma fizeram nossa identidade como gaúcho, e certamente é
um dos aspectos que aproxima nossa cultura mais dos pampas platinos do que do
resto do Brasil.
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