A
Mboitatá
(J. Simões Lopes Neto)
A Andrade Neves
Neto
Foi assim:
Num tempo muito antigo, muito, houve
uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem
serenada e sem rumores,sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da
mataria.
Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e
porque churrasco não havia,não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam
comendo canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os
tições...
Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam
parados, horas e horas,olhando, sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai... as
brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro
forte de bocas contentes.
Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz
de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem
vista para bater na querência; até nem sorro daria no seu próprio
rastro!
E a noite velha ia andando... ia andando...
Minto:
no meio do escuro e do silêncio morto, de vez em
quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho
vivente, furava o ar: era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do
último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e
que tardava tanto já...
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu -
quero-quero! - tão claro,vindo de lá do fundo da escuridão, ia agüentando a
esperança dos homens,amontoados no redor avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento,
então, nem nada.
Minto: na última tarde em que houve sol, quando o sol ia
descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a
estrela-d’alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma
manga d’água que levou um tempão a cair, e durou... e durou...
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se
largaram em fitas coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos,
num: os passos cresceram e todo aquele peso d’água correu para as sangas e das
sangas para os arroios,que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as
canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é que ficou sendo o
paradouro da animalada,tudo misturado, no assombro. E era terneiros e pumas,
tourada e potrilhos,perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E
então!...
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de
formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do
santa-fé e das tiriricas boiavam os ratões e outros miúdos.
E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na
cobra-grande, a -boiguaçu - que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta,
entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando.
Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu
pegou a comer as carniças.Mas só comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carniça foi cada vez
engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia.
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que
comeu.
A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o
cheiro doce do milho verde;o cerdo que come carne de bagual nem vinte alqueires
de mandioca o limpam bem; eo socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue tem
cheiro de pescado.Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos
olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão-aberta;
cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble
com os raia dose baços!...
Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que
tantos olhos comeu.
Todos - tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -,
guardavam, entranhado eluzindo, um rastilho da última luz que eles viram do
último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos - tantos, tantos! - com
um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no princípio um punhado, ao
depois uma porção,depois um bocadão, depois, como uma braçada.
E vai,como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem
escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem
couro grosso como a anta, vai,o seu corpo foi ficando transparente,
transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram
esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai,
afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna,um clarão sem chamas, já era um
fogaréu azulado, de luz amarela e triste efria, saída dos olhos, que fora
guardada neles, quando ainda estavam vivos...
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela vez
primeira viram a boiguaçutão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e
julgando que era outra,muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra de
fogo, boitatá, aboitatá!
E muitas vezes a boitatá rondou as rancheiras, faminta,
sempre que nem chimarrão.Era então que o téu-téu cantava, como
bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para
aquele grande corpo deserpente, transparente - tatá, de fogo - que media mais
braças que três laçosde conta e ia alumiando baçamente as carquejas... E depois,
choravam. Choravam,desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam
tanta ou maisluz que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos
homens, quejá os das carniças a enfaravam...
Mas, como dizia:
na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da
boitatá, e era por elaque o téu-téu cantava de vigia, em todos os flancos da
noite.
Passado um tempo, a boitatá morreu; de pura fraqueza
morreu, porque os olhoscomidos encheram-lhe o corpo mas lhe não deram
substância, pois que sustâncianão tem a luz que os olhos em si entranhada
tiveram quando vivos... Depois derebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre
os couros pelados, sobre ascarnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as
ossamentas desparramadas,o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra,
que se estraga de vez.
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por
aí.
E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de
novo!
Minto:
apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se
adelgaçando o negrume,foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no
coloreado do céu;depois foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura,
começou a subiruma lista de luz... depois a metade de uma cambota de fogo... e
já foi o solque subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e
destafeita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde
nasceu, para nascer denovo: só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se
juntou com a outra luzde que saiu.
Anda sempre arisca e só, nos lugares onde quanta mais
carniça houve, mais seinfesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme,
talvez entocada.
Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa
então o seu fadário.
A boitatá, toda enroscada, como uma bola - tatá, de
fogo! - empeça a correr ocampo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da
noite!...
É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega
seca nem aquenta a águados manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se
despenca e arrebenta-se,apagado... e quando um menos espera, aparece, outra vez,
do mesmo jeito!
Maldito! Tesconjuro!
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando
alguém topa com ela sótem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito
quieto, de olhos fechadosapertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se
anda a cavalo,desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lhe em
cima, e tocar agalope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a
ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de
repente, batendo numamacega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para
emutilar-se de novo,com vagar, na aragem que ajuda.
Campeiro precatado! reponte o seu gado da querência da
boitatá: o pastiçal, aífaz peste....
Tenho visto!
fonte: http://culturanativa.do.comunidades.net/index.php?pagina=1384529681