terça-feira, 31 de janeiro de 2012


Índio Gaúcho

Os grupos indígenas e sua distribuição
Autoria: Telmo Remião Moure
Os agrupamentos humanos que os europeus encontraram na América não eram originários deste continente. Sua origem até hoje constitui umenigma para os cientistas, os quais elaboraram várias teorias para explicar de onde vieram os primeiros povoadores da América. Para alguns pesquisadores, eles teriam vindo da Atlântida, que segundo a lenda havia existido entre o norte da África e a América e fora tragada pelas águas do oceano. Outros estudiosos consideram que os indígneas são autóctones, isto é, originaram-se do próprio continente americano.
As teorias mais aceitas atualmente afiram que o estabelecimento de seres humanos em solo americano deve-se às migrações ocorridas há milhares de anos através do estreito de Bering ou de ilhas da Oceania. Ao longo dos séculos, esses agrupamentos humanos se fixaram no continente, e quando os europeus chegaram à América já existiam grupos indígneas desde a Patagônia ao Alasca. Constituíam sociedades diferenciadas, e os únicos que apresentavam instituições sociais e políticas complexas (classes sociais e estado) eram os maias (na AMérica Central), os astecas (no atual México) e os incas (no Peru).
Quanto aos indígenas que viviam na banda oriental do rio Uruguai e as áreas próximas, sabe-se que não eram numerosos e que deixaram poucos vestígios materiais sobre o seu modo de vida antes da chegada dos colonizadores. Por isso, a classificação etnográfica desses povos se baseia em informações coletadas dos contatos estabelecidos entre eles e os europes que ocuparam a região.
Muitas são as classificações dos povos indígenas que viviam entre o oceano Atlântico e a margem esquerda do rio Uruguai. Apesar da importância de cada uma delas, adotaremos a mais usual entre os estudiosos da história do extremo sul do Brasil. Havia na região platina três grandes grupos indígenas: guaranispampeanosgês.
Antes e mesmo depois da chegada dos europeus, esses grupos indígenas empreenderam movimentos migratórios característicos de seu modo de vida nômade ou semi-sedentário. Migraram também forçados pela presença dos colonizadores e seus descendentes que ocupavam suas terras ou os aprisionavam para escravizá-los.
Os mais expressivos exemplos de migrações indígenas ocorreram com os guaranis e os minuanos (estes últimos, indígenas do grupo pampeano). Os primeiros, originários do alto Paraná, chegaram à região platina emduas levas, uma provavelmente no século IV d.C. e outra no século X. Atravessaram o rio Uruguai - expulsando dali os guaianás (do grupo dos gês) para o nordeste do atual território do Rio Grande do Sul - e se fixaram numa extensa faixa de oeste a leste do atual território do Rio Grande do Sul. Os minuanos, por sua vez, no século XVII, se transferiram da região compreendida entre os rios Uruguai e Paraná para o sul do rio Ibicuí.

Os guaranis

Os guaranis ocupavam as margens da laguna dos Patos, o litoral norte do atual Rio Grande do Sul, as bacias dos rios Jacuí e Ibicuí, incluindo a região dos Sete Povos das Missões. Dominaram também a parte central e setentrional entre os rios Uruguai e Paraná, bem como a parte sul da margem direita do rio da Prata e o curso inferior do rio Paraná.
Havia entre os guaranis três subgrupos principais: os tapes ( indígenas missioneiros dos Sete Povos), que ocupavam as margens dos rios a oeste do atual território do Rio grande do Sul e o centro da bacia do rio Jacuí; os arachanes ou patos, que viviam às margens do rio Gauíba e na parte ocidental da laguna dos patos; oscarijós, que habitavam o litoral, desde o atual município de São José do Norte até Cananéia, ao sul de São Paulo.
Apesar da variedade de dialetos, o tupi-guarani era o tronco lingüístico comum a esses grupos indígenas.

Os pampeanos

Os pampeanos constituíram um conjunto de tribos que ocupavam o sul e o sudoeste do atual Rio Grande do Sul,a totalidade dos território da República Oriental do Uruguai, os cursos inferiores dos rios Uruguai, Paraná e da Prata. Os subgrupos e tribvos mais conhecidos entre eles foram os charruasguenoasminuanos,chanás,iarós e mbohanes. Todos falavam a língua guíchua, com poucas variações dialetais.

Os gês (kaingangs)

Os gês possivelmente eram os mais antigos habitantes da banda oriental do rio Uruguai. É provável que essas tribos começaram a se instalar no atual Rio Grande do Sul por volta do século II a.C. Ocupavam o planalto rio-grandense de leste a oeste e abrangiam vários subgrupos: coroadosibijarasgualachosbotocudos,bugres,caaguáspinarés e guaianás. Estes últimos, no início do primeiro milênio d.C., foram expulsos pelos guaranis da região posteriormente denominada Sete Povos das Missões.
Os gês do atual Rio Grande do Sul foram dizimados pelos bandeirantes, guaranis missioneiros, colonizadores portugueses, brasileiros e ítalo-germânicos. Os grupos que vivem atualmente nas reservas de Nonoai, Iraí, Tenente Portela migraram de São Paulo e Paraná, no século passado, durante a expansão da lavoura cafeeira.
São conhecidos desde 1882 por kaingangs ("kaa" = mato; "ingang" = morador), conforme foram denominados genericamente por Telêmaco Borba (o mais importante estudioso e defensor dos indígneas no século passado).
Organização Social e Valores
Os povos indígenas que habitavam a bacia Platina se dividiam em pequenas comunidades, formando em alguns casos unidades familiares ou clãs. Cada tribo podia abranger mais de um clã, habitando em uma ou mais aldeias.
A divisão desses indígenas em grupos (guaranis, pampeanos e gês) não significa que aglutinavam dezenas de tribos em instituições de tipo federativo ou similares. Na verdade, essa classificação resulta do entendimento que os colonizadores e os pesquisadores tinham (e ainda têm) dos povos indígenas da América. Havia noi nterior desses grupos rivalidades, disputas e guerras.
Todos esses povos se caracterizavam pelo uso de instrumentos de pedra talhada e de ossos de animais. A sobrevivência era baseada na caça, pesca e nas plantas alimentícias. Essas atividades estavam relacionadas com o caráter de vida social nômade ou, em alguns casos, semi-sedentário. Os guaranis destacaram-se mais como agricultores, ainda que praticassem a caça, pesca e a coleta de plantas silvestres. Os pampeanos e os gês, por sua vez, se dedicavama uma agricultura muito rudimentar. Seja como for, nos três grupos o trabalho de preparar a terra para o cultivo era realizado pelos homens, utilizando-se a coivara como recurso básico. A semeadura e acolheira eram executadas pelas mulheres. O exercício da caça, da pesca e da guerra era exclusivo dos homens.
A produção de tecidos e utensílios de cerâmica já era praticada pelos indígenas da bacia Platina. Entretanto, os guaranis aprimoraram as técnicas atesanais, e seus produtos eram trocados por outros objetos e serviços entre as tribvos do próprio grupo, além de favorecer o contato com os pampeanos, gês e os colonizadores europeus e seus descendentes. Para s eprotegerem do frio intenso, confeccionavam também vestimentas de peles de animais.
O inverno também estimulou o desenvolvimento de técnicas para a construção de habitações. No planalto, onde viviam os gês, os rigores do inveno exigiram a abertura de covas de tamanhos variados e cobertas. Algumas dessas covas alcançavam até 18 metros de diâmetro por 7 de profundidade. Muitas vezes serviam para os indígenas se esconderem dos colonizadores.
Acreditavam na existência de bons e maus espíritos. Cada tribo possuía umlíder religioso cujos conhecimentos sobrenaturais tornava-o temido e respeitado.
Todos os grupos e tribos indígenas do extremo sul foram influenciados pelos guaranis. Nem os mais arredios, como os charruas, mbohanes, iarós, chanás e guenoas, deixaram de adotar vocábulos, costumes e crenças guaranis.
A poligamia era usual entre os indígenas da bacia Platina. Os chefes tinham direito a um maior número de esposas, para que pudessem dedicar-se mais à tribo. Os casamentos eram feitos entre indivíduos dos clãs, inexistindo praticamente entre membros de tribos diferentes.
A antropofagia também era praticada, mas limitada aos rituais religiosos.
Os indígenas davam grande atenção à limpeza corporal. Os banhos nos rios e riachos faziam parte de seu cotidiano. tanto os homens como as mulheres enfeitavam-se com penas de pássaros, pequenos ossos de animais, pedras e madeiras, além de usarem os mais diversos tipos de penteados.
Pintavam o corpo com tinturas vegetais e minerais, de acordo com cada momento: nascimentos, casamentos,mortes, guerras e cerimônias religiosas.
O contato dos indígenas com os colonizadores europeus
A conquista da banda oriental do rio Uruguai pelos europeus e seus descendentes teve graves conseqüências para os indígenas. Foi uma história de saques, pilhagens, mortes, dores e lágrimas. Em nome dos valores cristãos-ocidentais, praticou-se o genocídio dos indígenas, a apropriação de suas terras, a destruição de seua cultura.
Nas primeiras décadas da presença européia na América, a escravidão indígena para o trabalho em minas, engenhos e fazendas gerou intensa polêmica. O dominicano Bartolomeu de Las Casas conseguiu que o rei Carlos I, da Espanha, permitisse a utilização da mão-de-obra africana nas colônias e proibisse a escravidão indígena. Em 1534, o Papa Paulo III caracterizou os indígenas americanos como seres humanos, isto é, possuidores de alma. Isso não bastou, e os indígenas continuaram sendo tratados pelos colonizadores como se fossem animais.
A colonização da América provou uma ilimitada oferta de terras, e a carência de trabalhadores livres para cultivá-las estimulou a escravidão indígena.
Assim, os indígenas que viviam na banda oriental do rio uruguai foram caçados e aprisionados pelos bugreiros e bandeirantes nos séculos XVII e XVIII. Eram utilizados como soldados nas campanhas militares entre portugueses e espanhóis e para combater outras tribos. Além disso, os indígenas foram exterminados pelas doenças que acompanhavam os colonizadores europeus.
Existe uma farsa ao considerar o indígena indolente, um preguiçoso incorrígivel. Se essa concepção fosse verdadeira, porque ocorreram centenas de expedições conhecidas como bandeiras, caçando indígenas para vendê-los como escravos? O capítulo sdos bandeirantes, presente em todos os livros de História do Brasil, é pura ficção? Se o indígena era ocioso e imprestável ao trabalho, porque as reduções alcançaram níveis eficientes de organização produtiva? Tanto isso preocupou os interesses dos portugueses e spanhóis que as reduções sofreram boicotes econômicos, pressões políticas e destruições militares.
Considerar o indígena um vagabundo equivale a negas as raízes históricas do Rio grande do Sul, uma vez que os domadores e vaqueiros, iniciadores da formação social criadora de gado nas estâncias eram indígenas. O gaúcho descende desses.
Já no século XIX, a implantação da lavoura de café em São Paulo obrigou os indígenas a procurarem refúgios em outras regiões. Os que chegaram ao Rio Grande do Sul estabeleceram-se em áreas do planalto, mas logo foram ameaçados e destruídos pelos agricultores de origem européia que recebiam pequenos lotes de terras. Os imigrantes, a maioria germânicos e italianos, recorriam aos serviços de bugreiros especializados na destruição de aldeias e na matança de indígenas. Isso explica por que os gês do Rio Grande do Sul já não existem. Os que migraram de são Paulo pertencem ao grupo kaingang.
A destruição dos pampeanos foi facilitada por seu modo de vida nômade. Sobrevivendo da caça, pesca e coleta de vegetais, a ocupação das terras pelos criadores de gado impediu que esses indígenas se deslocassem de um lugar para outro, o que acabou destruindo sua cultura. Os pampeanos foram extremamente arredios aos contatos com os europeus e seus descendentes. Eles jamais aceitaram as reduções jesuíticas. Mesmo assim, eram frequentemente envolvidos nas lutas entre portugueses e espanhóis, sendo utilizado nas missões militares mais arriscadas. Nessas condições, eram facilmente abatidos pelos inimigos.
Resultado: hoje não existem remanescentes dos pampeanos no Rio Grande do Sul, uruguai e norte da Argentina (província de Entre Rios e Corrientes).
A descaracterização dos indígenas pampeanos também se deve à sua utilização como peão de estância nos primórdios da pecuária gaúcha. O cavalo, trazido pelos colonizadores, exerceu forte atração entre os indígenas, em especial nos pampeanos, que logo se transforaram em habilidosos cavaleiros. A figura tradiconal do gaúcho (o vaqueiro) está profundamente relacionada com esses indígenas.
Quanto aos guaranis, cabe ressaltar que foram mais receptivos aos colonizadores. As reduções organizadas pelos jesuítas espanhóis assumiram tal importância que escaparam ao controle das coroas ibéricas, obrigando-as a expulsar os jesuítas dos domínios portugueses em 1759, e dos espanhóis em 1768. Após essas providências, aos poucos as terras dos guaranis missioneiros foram ocupadas pelos colonizadores, o gado roubado e a população indígena dizimada, expulsa ou escravizada.

Cotidiano
Os grupos que ocupavam a banda oriental do rio Uruguai vivam em tribos independentes entre si. Cada tribo desenvolveu usos e costumes próprios. Não existiam governos organizados segundo os padrões da história européia. As chefias tinham caráter mais operacional do que de mando. Os assuntos mais importante eram resolvidos em reuniãos com todos os homens da tribo. A igualdade entre os membros da tribo era um princípio fundalmental e constante. As diferenças individuais implicavam em divisões de tarefas por sexo, idade, habilidade para caçar e força para a guerra.
Caçavam emas, veados, perdizes, perus, lontras, capivaras, lagartos, jaguares, pumas, zorros, cobras. Nos rios e na costa oceânica apanhavam peixes e moluscos. Coletavam plantas e frutas silvestres como o araçá, a pitanga e o butiá. As tribos semi-sedentárias cultivavam batata, mandioca, amendoim, milho, abóbora, algodão e mate. O cultivo era feito em lugares úmidos e protegidos pela mata. Domesticavam espécies de galinhas e patos, além de papagaios e pequenos animais selvagens.
O comércio entre as tribos era quase desconhecido. As tribos guaranis produziam alguns tecidos que eram trocados com outras tribos, sem regularidade.
Não foram artistas mas foram artesãos. Trabalharam a mandeira, o osso, o barro e a pedra produzindo objetos destinados à guerra, à caça, à pesca e à preparação de alimentos.
A caça e a guerra exigiram a criação de armas mais ofensivas do que defensivas. Para triunfarem nas lutas utilizavam os ataques de surpresa, as falsas fugas e emboscadas. Pintavam o rosto e o corpo para aterrorizar o inimigo e para dissimulação entre as folhas dos vegetais.
Acreditavam em uma vida pós-morte, visto que haviam rituais ao enterrarem os mortos em cestos de palha ou urnas de barro. Existiam tantas religiões quantas eram as organizações tribais. Há histórias que se referem à origem do mundo, à criação do homem (gerador do grupo social), às divisões de tarefas e obrigações sociais, às diferenciações entre o bem e o mal.

O Lenço de Pescoço e seus significados.  
O lenço do gaúcho, em sua evolução, desceu da cabeça ao pescoço, de início ainda com as pontas para trás. Popularizou-se ao ser adotado, politicamente, como designativo de cor partidária. Para destacar a cor símbolo de luta, surgiu o lenço gaúcho nos moldes atuais, atado ao pescoço e solto ao peito.
 O lenço gaúcho surge no Rio Grande do Sul como meio de distinção entre os federalistas e os republicanos. Gaspar Silveira Martins, político liberal, fundou o Partido Federalista adotando a Lenço Vermelho (Maragato).
 Como um símbolo de luta, Júlio de Castilhos, político aliado do Governo Federal, defendia o Partido Republicano e tinha como símbolo o Lenço Verde (Pica-paus).
 Mais tarde, o General Flores da Cunha, ao fundar o Partido Republicano Liberal, adotou o Lenço Branco (Chimango). Foi a partir do poemeto “Antonio Chimango”, onde Ramiro Barcelos, com o codinome Amaro Juvenal, satirizou o governador da época, Antonio Augusto Borges de Medeiros, que os republicanos ficaram conhecidos como chimangos.
 As cores mais tradicionais são a branca e a vermelha, que se popularizaram a partir da Revolução Federalista (1893).
 Hoje, o lenço de pescoço é peça integrante da indumentária gaúcha e sua cor não mais reflete posição político-partidária.
 O lenço gaúcho consiste em um tecido quadrangular, geralmente de seda, de cor única, exceção ao xadrez miúdo (carijó) e nunca de tecido estampado. As cores mais usadas são as históricas: o vermelho e o branco, ressaltando-se que o lenço preto representa tradicionalmente o sentimento de luto. Diversas são as formas de atar o lenço sendo oito as mais tradicionais entre as quais duas tem origem política:
 - nó farroupilha (1835) e o nó Federalista (1893);
 - nó tradicional, comum ou getulista, por ter sido usado pelo Presidente Getúlio Vargas, foi adotado pelos chimangos, sendo, portanto, feito em lenços de cor branca;
- nó quadrado ou domador foi adotado por Assis Brasil, que era maragato sendo usado nas cores vermelha ou preta (luto);
 - nó farroupilha, também conhecido como bago de touro, usado nas cores farroupilhas ou preto (luto);
 - nó ou tope farroupilha, muito usado de 1935 em diante pelos revolucionários farrapos;
 - nó apaixonado ou namorado, usado em qualquer cor de lenço;
 - nó dois topes, sem conotação política e pode ser feito em qualquer cor de lenço;
 - nó pachola, por representar a alegria, pode ser usado em qualquer cor de lenço, exceto a preta, que significa a tristeza do luto; e
 - nó crucifixo, usado somente em festas religiosas, podendo ser atado em lenço de qualquer cor.

Lendas Gaúchas

M`boitatá
Foi assim: num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia. Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria. Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os tições... Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando semver as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes. Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para abter na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro! E a noite velha ia andando... ia andando... Minto: No meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar: era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol eque vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já... Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu - quero-quero! - tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia se aguentando a esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas. Fora disto, tudo omais era silêncio; e de movimento, então, nem nada. Minto: Na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d'alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d'água que levou um tempão a cair, e durou... e durou... Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fias coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele peso d'água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E eram terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!... Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas boiavam os ratões e outros miúdos. E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a - boiguaçu- que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando. Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer carniça. Mas só comia os olhos e nada, nada mais. A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia. Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu. A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o cerdo que come carne de bagualnem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados e baços!... Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu. Todos - tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -, guardavam, entrenhado e luzindo, um rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos - tantos, tanto! - com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no princípio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada... E vai, Como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareando pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram sendo esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos. Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela primeira vez viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra do fogo, boitatá, a boitatá! E muitas vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como o bombeiro. E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente - tatá, de fogo- que media mais braças que três laços de conta e ia aluminando baçamente as carquejas... E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfaravam... Mas, como dizia: na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era ela que o téu-téu cantava de vigia, em todos os flancos da noite. Passado um tempo, a boitatá morreu: de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas lhe não deram substância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos... Depois de rebolar rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez. E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo! Minto: apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no coloreado do céu; depois se foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir um rastro de luz..., depois a metade de uma cambota de fogo... e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre. Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo; só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu. Anda arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada. Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário. A boitatá, toda enroscada, como uma bola - tatá, de fogo! -, empeça a correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!... É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manatiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagado... e quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito! Maldito! Tesconjuro! Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertado e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o láco, fazer uma armada grande e atirar-lha por cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa! A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda. Campeiro precatado! Reponte o seu gado de querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste... Tenho visto!

Negrinho do Pastoreio
No tempo dos escravos, havia um estancieiro muito ruim, que levava tudo por diante, a grito e a relho. Naqueles fins de mundo, fazia o que bem entendia, sem dar satisfação a ninguém. Entre os escravos da estância, havia um negrinho, encarregado do pastoreio de alguns animais, coisa muito comum nos tempos em que os campos de estância não conheciam cerca de arame; quando muito alguma cerca de pedra erguida pelos próprios escravos, que não podiam ficar parados, para não pensar bobagem... No mais, os limites dos campos eram aqueles colocados por Deus Nosso Senhor: rios, cerros, lagoas. Pois de uma feita o pobre negrinho, que já vivia as maiores judiarias às mãos do patrão, perdeu um animal no pastoreio. Prá quê! Apanhou uma barbaridade atado a um palanque e depois, cai-caindo, ainda foi mandado procurar o animal extraviado. Como a noite vinha chegando, ele agarrou um toquinho de vela e uns avios de fogo, com fumo e tudo e saiu campeando. Mas nada! O toquinho acabou, o dia veio chegando e ele teve que voltar para a estância. Então foi outra vez atado ao palanque e desta vez apanhou tanto que morreu, ou pareceu morrer. Vai daí, o patrão mandou abrir a "panela" de um formigueiro e atirar lá dentro, de qualquer jeito, o pequeno corpo do negrinho, todo lanhado de laçaço e banhando em sangue. No outro dia, o patrão foi com a peonada e os escravos ver o formigueiro. Qual não é a sua surpresa ao ver o negrinho do pastoreio vivo e contente, ao lado do animal perdido. Desde aí o Negrinho do Pastoreio ficou sendo o achador das coisas extraviadas. E não cobra muito: basta acender um toquinho de vela ou atirar num cano qualquer naco de fumo.

Salamanca do Jaraú
No tempo dos padres jesuítas, existia um moço sacristão no Povo de Santo Tomé, na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Ele morava numa cela de pedra nos fundos da própria igreja, na praça principal da aldeia. Ora, num verão mui forte, com um sol de rachar, ele não conseguiu dormir a sesta. Vai então, levantou-se, assoleado e foi até a beira da lagoa refrescar-se. Levava consigo uma guampa, que usava como copo. Coisa estranha: a lagoa toda fervia e largava um vapor sufocante e qual não é a surpresa do sacristão ao ver sair d'água a própria Teiniaguá, na forma de uma lagartixa com a cabeça de fogo, colorada como um carbúnculo. Ele, homem religioso, sabia que a Teiniaguá - os padres diziam isso!- tinha partes com o Diabo Vermelho, o Anhangá-Pitã, que tentava os homens e arrastava todos para o inferno. Mas sabia também que a Teiniaguá era mulher, uma princesa moura encantada jamais tocada por homem. Aquele pelo qual se apaixonasse seria feliz para sempre. Assim, num gesto rápido, aprisionou a Teiniagá na guampa e voltou correndo para a igreja, sem se importar com o calor. Passou o dia inteiro metido na cela, inquieto, louco que chegasse a noite. Quando as sombras finalmente desceram sobre a aldeia, ele não se sofreu: destampou a guampa para ver a Teiniaguá. Aí, o milagre: a Teiniaguá se transformou na princesa moura, que sorriu para ele e pediu vinho, com os lábios vermelhos. Ora, vinho só o da Santa Missa. Louco de amor, ele não pensou duas vezes: roubou o vinho sagrado e assim, bebendo e amando, eles passaram a noite. No outro dia, o sacristão não prestava para nada. Mas, quando chegou a noite, tudo se repetiu. E assim foi até que os padres finalmente desconfiaram e numa madrugada invadiram a cela do sacristão. A princesa moura transformou-se em Teiniaguá e fugiu para as barrancas do rio Uruguai, mas o moço, embriagado pelo vinho e de amor foi preso e acorrentado. Como o crime era horrível - contra Deus e a Igreja! - foi condenado a morrer no garrote vil, na praça, diante da igreja que ele tinha profanado. No dia da execução, todo o Povo se reuniu diante da igreja de São Tomé. Então, lá das barrancas do rio Uruguai a Teiniaguá sentiu que seu amado corria perigo. Aí, com todo o poder de sua magia, começou a procurar o sacristão abrindo rombos na terra, um valos enormes, rasgando tudo. Por um desses valos ela finalmente chegou à igreja bem na hora em que o carrasco ia garrotear o sacristão. O que se viu foi um estouro muito grande, nessa hora, parecia que o mundo inteiro vinha abaixo, houve fogo, fumaça e enxofre e tudo afundou e tudo desapareceu de vista. E quando as coisas clarearam a Teiniaguá tinha libertado o sacristão e voltado com ele para as barrancas do rio Uruguai. Vai daí, atravessou o rio para o lado de cá e ficou uns três dias em São Francisco de Borja, procurando um lugar afastado onde os dois apaixonados pudessem viver em paz. Assim, foram parar no Cerro do Jarau, no Quaraim, onde descobriram uma caverna muito funda e comprida. E lá foram morar, os dois. Essa caverna, no alto do Cerro, ficou encantada. Virou Salamanca, que quer dizer "gruta mágica", a Salamanca do Jarau. Quem tivesse coragem de entrar lá, passasse 7 Provas e conseguisse sair, ficava com o corpo fechado e com sorte no amor e no dinheiro para o resto da vida. Na Salamanca do Jarau a Teiniaguá e o sacristão se tornaram os pais dos primeiros gaúchos do Rio Grande do Sul. Ah, ali vive também a Mãe do Ouro, na forma de uma enorme bola de fogo. Às vezes, nas tardes ameançando chuva, dá um grande estouro numa das cabeças do Cerro e pula uma elevação para outra. Muita gente viu.

Angoéra
Nos sete povos das Missões, no Pirapó, ainda no tempo dos padres jesuítas, vivia um índio muito triste, que se escondia de tudo e de todos pelos matos e peraus. Era um verdadeiro fantasma e por isso era chamado de Angoéra (fantasma, em guarani). E fugia da igreja como o diabo da cruz! Mas um dia a paciência dos padres valeu mais e o Angoéra foi batizado, convertendo-se à fé cristã e deixando de vagar pelos rincões escondidos. Recebeu o nome de Generoso e tornou-se alegre e bom, mui amigo de festas e alegrias. E um dia morreu, mas sua alma alegre e festeira continuou por aí, até hoje, campeando diversão. Onde tenha um fandango, lá anda rondando a alma do Generoso. Se rufa uma viola sozinha, é a mão dele. Se se ouve uma risada galponeira ou se se levanta de repente a saia de alguma moça, todos sabem - é ele. Quando isto acontece, o tocador que está animando a festa deve cantar em sua homenagem: "Eu me chamo Generoso, morador de Pirapó. Gosto muito de dançar com as moças, de paletó".

O Caverá
O Caverá é uma região na fronteira-oeste do Rio Grande do Sul, ouriçada de cerros, que se estende entre Rosário do Sul e Alegrete. Na Revolução de 1923, entre os maragatos (os revolucionários) e os chimangos (os legalistas) o Caverá foi o santuário do caudilho maragato Honório Lemes, justamente apelidado "O Leão do Caverá". Diz a lenda que a região, no passado, era território de uma triba dos Minuanos, índios bravios dos campos, ao contrário dos Tapes e Guaranis gente mais do mato. Entre esses Minuanos, destacava-se a figura de Camaco, guerreiro forte e altivo, mas vivendo uma paixão não correspondida por Ponaim, a princesinha da tribo, que só amava a própria beleza... Os melhores frutos de suas caçadas, os mais valiosos troféus de seus combates, Camaco vinha depositar aos pés de Ponaim, sem conseguir dela qualquer demonstração de amor. Um dia, achando que lhe dava uma tarefa impossível, Ponaim disse que só se casaria com Camaco se ele trouxesse a pele do Cervo Berá para forrar o leito do casamento. O Cervo Berá era um bicho encantado, com o pelo brilhante - daí o seu nome. O mato era dele: Caa-Berá, Caaverá, Caverá, finalmente. Então Camaco resolveu caçar o cervo encantado. Montando o seu melhor cavalo, armado com vários pares de boleadeiras, saiu a restrear, dizendo que só voltaria depois de caçar e courear o Cervo Berá. Depois de muitas luas, num fim de tarde ele avistou a caça tão procurada na aba do cerro. O cervo estava parado, cabeça erguida, desafiador, brilhando contra a luz do sol morrente. Sem medo, Camaco taloneou o cavalo, desprendeu da cintura um par de boleadeiras e fez as pedras zunirem, arrodeando por cima da cabeça. Então, no justo momento em que o Cervo Berá deu um salto para a frente quando o guerreiro atirou as Três Marias, houve um grande estouro no cerro e uma cerração muito forte tapou tudo. Durante três dias e três noites os outros índios campearam Camaco e seu cavalo, mas só acharam uma grande caverna que tina se rasgado na pedra dura do cerro e por onde, quem sabe, Camaco e seu cavalo tinham entrado a galope atrás do Cervo Berá para nunca mais voltar.

João de Barro
Contam os índios que, há muito tempo, numa tribo do sul do Brasil, um jovem se apaixonou por uma moça de grande beleza. Melhor dizendo: apaixonaram-se. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento. O pai dela perguntou: - Que provas podes dar de sua força para pretender a mão da moça mais formosa da tribo? - As provas do meu amor! - respondeu o jovem. O velho gostou da resposta mas achou o jovem atrevido. Então disse: - O último pretendente de minha fila falou que ficaria cinco dias em jejum e morreu no quarto dia. - Eu digo que ficarei nove dias em jejum e não morrerei. Toda a tribo se espantou com a coragem do jovem apaixonado. O velho ordenou que se desse início à prova. Enrolaram o rapaz num pesado couro de anta e ficaram dia e noite vigiando para que ele não saísse nem fosse alimentado. A jovem apaixonada chorou e implorou à deusa Lua que o mantivesse vivo para seu amor. O tempo foi passando. Certa manhã, a filha pediu ao pai: - Já se passaram cinco dias. Não o deixe morrer. O velho respondeu: - Ele é arrogante. Falou nas forças do amor. Vamos ver o que acontece. E esperou até até a última hora do novo dia. Então ordenou: - Vamos ver o que resta do arrogante Jaebé. Quando abriram o couro da anta, Jaebé saltou ligeiro. Seu olhos brilharam, seu sorriso tinha uma luz mágica. Sua pele estava limpa e cheirava a perfume de amêndoa. Todos se espantaram. E ficaram mais espantados ainda quando o jovem, ao ver sua amada, se pôs a cantar como um pássaro enquanto seu corpo, aos poucos, se transformava num corpo de pássaro! E exatamente naquele momento, os raios do luar tocaram a jovem apaixonada, que também se viu transformada em um pássaro. E, então, ela saiu voando atrás de Jaebé, que a chamava para a floresta onde desapareceu para sempre Contam os índios que foi assim que nasceu o pássaro joão-de-barro. A prova do grande amor que uniu esses dois jovens está no cuidado com que constroem sua casa e protegem os filhotes. E os homens amam o joão-de-barro porque lembram da força de Jaebé, uma força que vinha do amor e foi maior que a morte.

Quero-Quero
Quando a Sagrada Família fugia para o Egito, com medo das espadas dos soldados do rei Herodes, muitas vezes precisou se esconder no campo, quando os perseguidores chegavam perto. Numa dessas vezes, Nossa Senhora, escondendo o Divino Piá, pediu a todos os bichos que fizessem silêncio, que não cantassem, porque os soldados do reii podiam ouvir e dar fé. Todos obedeceram prontamente, mas o Quero-quero, não: queria-porque-queria cantar. E dizia: Quero! Quero! Quero! E tanto disse que foi amaldiçoado por Nossa Senhora: ficou querendo até hoje.



Umbú
O Umbu é uma árvore grande e folhuda que cresce no pampa. Muitas vezes é solitária, erguendo-se única no descampado e atrai os campeiros, os tropeiros, os carreteiros que fazem pouso sob sua proteção. O tronco do Umbu é muito grosso, as raízes fora da terra são grandes, mas ninguém usa a madeira da árvore - não serve para nada, mesmo. É farelenta, quebradiça, parece feita de uma casca em cima da outra. Por quê? Pois não vê que quando Deus Nosso Senhor criou o mundo, ao fazer as árvores perguntava a cada uma delas o que queria na terra. A laranjeira, o pessegueiro, a macieira, a pereira e assim por diante, quiseram frutos deliciosos. O pau-ferro, o angico, o ipé, o açoita-cavalo, a guajuvira, pediram madeira forte. - E tu, Umbu, queres também frutos doces e madeira forte? - Nada, Senhor. - respondeu o Umbu. - Eu quero apenas folhas largas para as sesteadas dos gaúchos e uma madeira tão fraca que se quebre ao menor esforço. - A sombra, Eu compreendo - disse o Senhor. - Mas porque a madeira fraca? - Porque eu não quero que algum dia façam dos meus braços a cruz para o martírio de um justo. E Deus Nosso Senhor, que teve o filho crucificado, atendeu o pedido do Umbu.

M`bororé
No tempo dos Sete Povos das Missões, havia um índio velho muito fiel aos padres jesuítas, chamado MBororé. Com a chegada dos invasores portugueses e espanhóis, os padres precisaram fugir levando em carretas os tesouros e bens que pudessem carregar. Assim, amontoaram o muito que não podiam levar consigo – ouro, prata, alfaias, jóias, tudo!- e construíram ao redor uma casa branca, sem porta e sem janela. Para evitar a descoberta da casa pelo inimigo e o conseqüente saqueio, deixaram o velho índio fiel MBororé cuidando, com ordens severas de só entregar o tesouro quando os jesuítas voltassem às Missões. Mas os jesuítas nunca mais voltaram. Com o passar dos anos, o velho índio morreu e o tempo foi marcando tudo, deixando as ruínas de pé como as cicatrizes de um sonho que acabou. Acabou? Não. A Casa de MBororé continua lá num mato das Missões, imaculadamente branca, cuidada pela alma do índio fiel que ainda espera a volta dos jesuítas. Às vezes, algum mateiro –lenhador ou caçador- dá com ela, de repente, num campestre qualquer. Imediatamente dá-se conta de que é a Casa de MBororé, cheia de tesouros. Resolve então marcar bem o local para voltar com ferramentas e abrir a força a casa que não tem porta nem janela. Guarda bem o lugar na memória pelas árvores tais e tais, pela direção do sol e coisas assim. Sai, volta com ferramentas, só que nunca mais acha de novo a Casa Branca de MBororé, sem porta e sem janela.”

Lagoa Vermelha
A primeira tentativa dos padres jesuítas, que resultou na fundação de 18 Povos Missioneiros no Rio Grande do Sul, deu em nada. Os bandeirantes de Piratininga, que haviam arrasado as reduções do Guairá caçando e escravizando índios para a escravidão das lavouras de cana-de-açúcar de São Paulo e Rio de Janeiro, quando souberam que os padres tinham vindo mais para o sul e erguido suas aldeias no Tape, vieram aqui fazer o que sabiam fazer. Assim e aos poucos, os padres tiveram que refluir para o oeste, fazendo agora na volta o mesmo caminho que tinham feito na vinda. E nessa fuga tratavam de levar consigo tudo o que podiam carregar. O que não podiam, queimavam ou enterravam. Casas, plantações, até igrejas foram incendiadas, para que nada ficasse ao emboaba agressor. Pois diz-que numa dessas avançava pelo Planalto, no rumo da Serra, uma carreta carregada de ouro e prata, fugindo das Missões. Ali vinha a alfaia das igrejas, candelabros, castiçais, moedas, ouro em pó, um verdadeiro tesouro cujo peso faziam os bois peludearem. Com a carreta, alguns índios e padres jesuítas e atrás deles, sedentos de sangue e ouro, os bandeirantes. Ao chegarem às margens de uma lagoa, não puderam mais. Desuniram os boise atiraram a carreta com toda a sua preciosa carga na lagoa, muito profunda. E vai então os padres mataram os índios carreteiros e atiraram os corpos n'água, para que não contassem a ninguém onde estava o tesouro. Com o sangue dos mortos, a lagoa ficou vermelha. E lá está, até hoje. Ao seu redor, cresceu uma bela cidade, que tomou seu nome - Lagoa Vermelha. E cada que um dos seus moradores passa na beira das águas coloradas, lembra que ali ninguém se banha, nem pesca, e segundo a tradição, a lagoa não tem fundo. E nas secas mais fortes e nas chuvaradas mais brabas, o nível da lagoa é sempre o mesmo.
*Retiradas do site Lendas Gaúchas


Jogos Gaudérios

Truco
Jogo de cartas entre dois ou quatro parceiros, cada um dos quais recebe três cartas. Quando é apenas entre duas pessoas chama-se truco de mano.
Dá um tranquito até as poesias e veja esta aí abaixo completa:
"O TRUCO é um jogo tão guasca
Como a Tava e as Chilenas.
Velhas cartas Sarrancenas
Quatro a quatro, do Ás ao Rei
Trucando assim me criei
De Mano, Quatro, Oito ou Seis
E até jogando de Três
Muito Carancho tosei.
Sete em porta
Jogo de cartas, variante do monte. Joga-se com vinte e um ou mais baralhos, em uma caixa da qual o banqueiro tira duas cartas, fazendo-se nestas as apostas.
Não ficando reservada ao banqueiro nenhuma carta, a vantagem dele consiste em pagar apenas 50% das apostas quando a carta sai em porta, quer dizer, quando é a primeira a ser tirada, e, além disso, em ganhar, em tal caso, o total apostado na outra carta.
Jogo do Osso

Jogo de azar em que intervem dois contendores, frente a frente numa faixa de terreno, chamada cancha, com extensão variável de oito a 11 passos, e que consiste em arremessar para cima um osso de jarrete de gado bovino, aparelhado em dois de seus lados, ganhando caso o osso caia no chão com sua parte concava para cima.
A cancha com uma braça de largura, chega, e três de comprimento; no meio bota-se uma raia de piola (cordão, barbante), amarrada em duas estaquinhas ou mesmo um risco no chão, serve; de cada cabeça da cancha é que o jogador atira, sobre a raia do centro: este atira daqui para lá, o outro atira de lá pra cá.
O osso é chamado de taba (ou tava), que é o osso do garrão de rês vacum. O jogo é só de culo ou suerte.
Culo équando a taba (o osso) cai com o lado arredondado pra baixo; quem atira assim perde logo a parada. Suerte é quando o lado chato fica embaixo: ganha logo e sempre.
Quer dizer: quem atira culo perde, se é suerte ganha e logo arrasta a parada.
Bocha - Autor: Salvador Fernando Lamberty

Este jogo consiste em arremessar, desportivamente, bochas (bolas) de madeira ou de resina sintética, sobre uma cancha de terra batida.
Numa disputa, entre duas pessoas, visa-se o lugar mais próximo ao "balim" (pequena bocha), concorrido com arremessos de 4 bochas cada jogador e a posterior contagem dos pontos.
Inicia-se a jogada com o arremesso do balim pelo jogador que logrou mais pontos na partida anterior. Cabe-lhe, igualmente, o direito de arremessar a primeira bocha. Quando um está no "ponto" (mais próximo do balim), faz com que seu adversário jogue suas bochas até conseguir lugar mais próximo ou acabe as suas bochas.
O jogo de bocha foi trazido para o Rio Grande do Sul, provavelmente pelos italianos, que têm como seu esporte favorito. O surgimento deste jogo foi na Espanha, onde camponeses espanhóis jogavam com bochas de "pedra-sabão".
Posterior aos anos 60, veio a utilização do cerne de madeira, quando o pau-ferro, extremamente duro e pesado, teve
o grande domínio das canchas de bochas.
O jogo de bocha não é tão antigo em nossos pampas, porém é de profunda aceitação em todas as regiões. Os italianos levaram-no para todas as suas colonizações.
Este jogo não guarda marcas de machismo. Não disputa coragem nem agilidades. Disputa, desportivamente, a firmeza e o tenteio do pulso, no "arrime" ou precisão de um "tiro", no "bochaço".
Antigamente eram permitidas as "lagarteadas" - arremesso livre das bochas pelo ar, invés de rolar. Hoje as regras determinam distâncias específicas para as áreas a serem atingidas pelos bochaços.
Bolita - Autoria: Paula Simon Ribeiro e Rogério Fossari Sanchotene
As bolinhas de gude, de inhaque, unhas ou bolitas, são o jogo por excelência dos guris de qualquer idade.
Surgem geralmente depois das chuvas, quando os campinhos estão molhados e a meninada tem que brincar perto de casa. Diversas modalidades de jogo são praticadas, entre elas o Boco ou Imba, o Triângulo, a Circunferência, etc, que podem ser "as vera" ou "as brinca". "As vera" quando o jogador perde também suas bolitas, e "as brinca", quando perde só o jogo, oeste caso feito apenas por distração.
Os jogadores, conforme combinação prévia, podem apostar uma ou mais bolinhas que depois serão escolhidas entre as de propriedade do perdedor. Muito disputadas são as "águidas", leitosas e coloridas. Ocorrem brigas quando o perdedor paga sua "dívida" com bolinhas "nicadas", ou também quando o jogador dá um impulso com a mão ao efetuar a jogada. O impulso deve ser dado apenas com o polegar.
Boco ou Imba - um pequeno buraco circular é feito no chão geralmente com o calcanhar ou com um pedaço de madeira ou pedra. O jogo pode ser feito com um ou mais bocos.
O termo boco vem do tupi Boc ou boque que quer dizer abertura ou racha pequena. Para "tirar o ponto", uma bola maior é colocada a uma distância de quatro metros aproxima damente, e quem jogar a sua bolita mais perto desta tem o direito, de iniciar a brincadeira, mas para "tirar o ponto", ninguém quer começar e quem grita em primeiro lugar "último" adquire este direito, que lhe dá a vantagem de caprichar mais na jogada, colocando-se mais perto do ponto.
Quando as distâncias não estão muito definidas, as dívidas são sanadas por medição feita em pés, ou seja, colocando o calcanhar ou salto do sapato perto da bolita em direção a ou tra. Conta-se os pés e, se a distância é menor couta-se em palmos ou dedos atravessados.
As partidas podem ser simples ou em torneios que duram 3 ou 4 dias.
No jogo do Triângulo é feito um gráfico no chão e colocadas as bolinhas sobre os vértices, e quando é maior o número de jogadores "casam" também sobre os lados. É vencedor quem consegue colocar dentro do triângulo as bolinhas dos adversários. No jogo da Circunferência o procedimento é o mesmo.
Quando o jogador está em má posição para efetuar a sua jogada, pode pedir distância, isto é, mudar-se para outro ângulo, porém conservando a distância real da verdadeira posição.
Como na maioria das brincadeiras infantis, o jogo de bolita possui uma linguagem própria, chamam de "bochão" a bola maior que as outras, "aça", as esferinhas de metal; "nicada" é a bolinha lascada, e "Nica" a favorita para o jogo; "rabar" é errar, e "casar" é colocar bolinhas em jogo.
Carreira de Boi
Diversão popular registrada em várias localidades do vale do Jacuí, a Carreira de Bois na "talha" é uma competição de força e adestramento entre bois e touros.
A denominação Carreira - expressão popular ainda ligada às antigas modalidades competitivas entre bois - não mais denota corrida. Os bois competidores são jungidos em uma canga especial, presa a cambões estirados por alçaprema ou talha, ligada a um palanque irremovível.
O boi carreiro quase não se afasta do lugar onde está cangado, embora forcejando. Considera-se vencedor o animal que sustentar a canga em posição mais avançada, durante um minuto à frente do outro.
Em qualquer época, os donos dos animais "atam" a Carreira, isto é, combinam a competição, desde que os bois estejam em condições. Na manhã do dia escolhido, os contratantes tomam várias providências: pesagem dos animais, escolha do terreno propício, colocação da tronqueira ou palanque, com a respectiva escora para a bimbarra ou "talha", colocação do "morto" (tronco enterrado em uma vala), etc.
A Carreira obedece a regulamentos estipulados oralmente entre os contratantes. Estes escolhem pessoas consideradas idôneas para ajuizar a competição: "o cuidado do mau jogo" e o juiz da Carreira.
Como outras m
odalidades de competição, a Carreira reúne torcidas animadíssimas, que aos gritos se desafiam, fazendo apostas em dinheiro. A cancha é, outrossim, ponto de encontro dos vizinhos. Embora as competições ocorram mais frequentemente à tarde, grande número de pessoas já se encontra, pela manhã, no local, onde, em botequim improvisado, comercia comidas e bebidas.
Carreira de Cancha Reta - Autor: Tau Golin
A carreira foi o esporte e o jogo de preferência do homem do pampa.
Fazia parte tanto de negócios que envolviam grandes somas de dinheiro como das brincadeiras telúricas.
Os ginetes, em pleno campo, se desafiavam. Muitas vezes, no retorno das campeiradas, tiravam cismas de quem possuía o cavalo mais rápido. Todavia, no geral, "atavam" carreiras para datas específicas, geralmente aos domingos.
Nos primeiros tempos, as carreiras eram disputadas com os cavalos de trabalho, os CRIOULOS. Esses eqüinos, de origem ibérica possuíam grande predominância de sangue árabe. Com o passar dos séculos, foram apurados e terminaram se definindo como raça específica do Cone Sul e muito valorizada nas atividades de pastoreio.
Os carreiristas sempre preferiam a "cancha reta", de metragem não muito longa. O percurso podia ser de 260 a 400 metros. Com o hábito das carreiras e invariavelmente com o volume de dinheiro envolvido no jogo, a atividade também se transformou em negócio. A paixão de muitos homens pelas carreiras provocou a perda de grandes fortunas: rebanhos e até estâncias. Conta-se que os gaúchos chegavam a apostar as próprias mulheres.
Participar com certa garantia de sucesso significava preparar apropriadamente os cavalos. Dessa forma, apareceram duas especialidades vinculadas às carreiras: a do compositor e a do jóquei.
Carreiras!...Meninos e moços velhos,
Não perdem tal festa, não perdem carreiras!
E a par das apostas pequenas ou grandes,
Apostam-se olhadas às moças faceiras.